24/03/2020 16:59 - Destaques
Sou profissional de saúde e todo o dia recebo via telefone celular uma enxurrada de notícias falsas a respeito do Covid-19 e do seu propagador o Corona Vírus, para muitos isso pode parecer algo inédito no país. Como uma doença respiratória, que nem é tão fatal pode deixar de joelhos uma nação de 200 milhões de pessoas? Como os meios de comunicação acabam levando a julgamentos simplistas e espalhando o terror e a ignorância? Será que metrópoles como São Paulo, Salvador e o Rio de Janeiro já ficaram, em alguma ocasião totalmente de quarentena? Será que já ocorreu de uma onda de pessoas desesperadas invadindo farmácias e supermercados achando que o Mundo acabaria amanhã? Alguma vez isto já ocorreu no país?
Por mais incrível que pareça há 100 anos atrás o cenário conseguia ser bem pior.
Estamos falando da Gripe Espanhola, uma doença que se espalhou rapidamente e vitimou algo entre 50 e 100 milhões de pessoas no ano de 1918.
A violenta mutação do vírus da gripe veio a bordo do navio Demerara, procedente da Europa. Em setembro desse ano, sem saber que trazia o vírus, o transatlântico desembarcou passageiros infectados no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro. Sem qualquer medida de contenção esses passageiros infectados espalharam a doença por todo o país.
Logo cenas brutais começaram a aparecer, pessoas doentes morriam as centenas, os dados oficiais dizem que foram 35.000 mortos apenas no Brasil. Mas como naquela época os serviços de saúde eram controlados por cada província e não existia um Ministério da Saúde central o número de vítimas fatais pode ser muito maior. Os mortos eram deixados na calçada e de tempos em tempos carroças e caminhões recolhiam as vítimas que eram enterradas em valas comuns, sem velório nem lápide.
Como o Brasil lutava a Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados logo se espalhou o boato de que a Gripe Espanhola tinha sido inventada por químicos alemães como uma arma de guerra, a fim de obrigar os aliados a negociar um acordo de paz. Esse boato foi reproduzido em charges e editoriais inclusive no Rio Grande do Sul, o jornal A Federação de Porto Alegre chegou a afirmar que a moléstia teria sido desenvolvida dentro de um submarino militar. Essa histeria não lembra as acusações de que a China é responsável pelo Covid-19?
Teriam sido os alemães os criadores do mortífero vírus? Muitas décadas depois a verdade veio a tona. No dia 4 de março de 1918, um soldado da base militar de Fort Riley, nos Estados Unidos, ficou de cama, com sintomas de uma forte gripe. Esse acampamento no Kansas treinava cidadãos americanos para a Primeira Guerra Mundial. Naquela semana de março, mais de 200 soldados adoeceram também. Em apenas 14 dias, mais de mil militares foram parar em hospitais — e o mal se alastrou por outros acampamentos. No pico da epidemia, mais de 1 500 militares reportaram a enfermidade em um único dia. A doença se espalhou rapidamente pelos EUA e pegou carona com os soldados americanos que embarcaram para a Europa. E de lá ganhou o mundo.
A pandemia de 1918 ficou conhecida como Gripe Espanhola, por que a neutra Espanha não estava em guerra e não tinha a imprensa censurada, assim foi o primeiro país a relatar a nova moléstia, logo ela foi chamada de Influenza Espanhola. Desta forma os boatos propagados naquela época eram falsos, a doença não era nem alemã nem espanhola, mas norte americana. Se fossemos aplicar o mesmo argumento que o pais em que surge uma doença é responsável por ela, o Brasil teria que pagar milhões em indenizações por causa da Febre Amarela e do Mal de Chegas, doenças que assolam países africanos e do sudeste asiático e que foram descobertas em território nacional. A afirmação atual de que tudo não passa de uma trama chinesa para controlar a economia não tem base nem na lógica, nem na ciência e muito menos na medicina, já que epidemias podem surgir em qual quer lugar e época. Outra coisa muito difundida naquela época eram as receitas caseiras e laboratórios farmacêuticos afirmando possuir a cura para um mal recém descoberto.
Outras cenas da época reproduzem com perfeição o que vemos hoje. O Rio de Janeiro com ruas vazias, mercados e aviários lotados por pessoas desesperadas em busca de um simples frango. Já que se dizia que uma canja de galinha era o melhor tratamento para a gripe. A situação era tal que uma galinha chegava a custar 10 contos de réis, o equivalente a cerca de 10 % do salário médio de um operário. Se formos ver as recomendações médicas de um século atrás e as recomendações atuais, elas são praticamente as mesmas: Lavagem das mãos, regular e constante; Isolamento social e obediência as orientações médicas.
E lembre-se culpar uma nação pela epidemia é um erro que nosso ancestrais cometeram, por isso não precisamos repeti-lo.
TEXTO: JORGE ROGÉLSON DA SILVA - FISCAL SANITÁRIO
NOTA: TODAS AS IMAGENS SÃO DA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO E ESTÃO EM DOMÍNIO PÚBLICO.
Fonte: Prefeitura Municipal de Selbach
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